Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração
a tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso!
Ó céu! Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
Orientações de leitura:
1. A ceifeira é uma mulher trabalhadora, sacrificada, de condição social baixa, viúva e com uma voz bonita.
2. Verso 9, "Ouvi-la alegra e entristece": Paradoxo. O eu poético sente alegria por constatar que a ceifeira, apesar de ter motivos para ser uma pessoa triste, revela no seu canto um contentamento de quem aceita a vida com o que esta tem de bom e de mau. Todavia, o sujeito poético experimenta, simultaneamente, tristeza por se aperceber de que a ceifeira não tem verdadeira consciência das suas precárias condições de vida, pois, se tivesse, não cantaria exprimindo-se tão alegremente.
3. A dor do eu poético é causada pelo seu intelecto, porquanto ele intelectualiza as suas emoções. Na análise profunda e lúcida que faz não entende como a ceifeira pode exprimir-se com tamanha alegria.
4. O eu lírico gostaria de não sentir a dor derivada da sua lucidez e intelectualização das emoções, logo, se fosse a ceifeira não sentiria o sofrimento causado pela intelectualização do sentir.
5. Versos 18-21, "Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso!": O sujeito poético desejava ser inconsciente e feliz como a ceifeira, libertando-se, assim, da dor causada pelo processo da intelectualização das emoções; "[...] A ciência / Pesa tanto e a vida é tão breve!": o eu poético reconhece que o conhecimento gera sofrimento existencial que aparece como inútil perante a efemeridade da vida.
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