Quinta-feira, 3 de Maio de 2007

"Autopsicografia" - análise

O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente

 

E os que lêem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm

 

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda 

Que se chama coração

                                                                          

                                              0001639a

 

 

Esta composição poética é uma esplêndida síntese do que Pessoa pensava sobre a génese e a natureza da poesia. Podemos, pois, considerá-lo como uma verdadeira "arte poética".

O assunto do poema desenvolve-se em três partes lógicas, que correspondem a cada uma das estrofes.

Na primeira parte, o primeiro verso contém a ideia fundamental do poema, na frase de tipo axiomático "o poeta é um fingidor", que, logo a seguir, é explicado, ou confirmado, por meio de uma particularização centrada na dor.

Quer isto dizer que a poesia não está na dor experimentada, ou sentida realmente, mas no fingimento dela. Isto é, a dor sentida, a dor real, para se elevar ao plano da arte, tem de ser fingida, imaginada, tem de ser expressa em linguagem poética, o poeta tem que partir da dor real, a dor que deveras sente.

Não basta, para haver poesia, a expressão espontânea dessa dor real, tal como o faria, por exemplo, um doente relatando a sua dor ao médico. Não há poesia, não há arte sem imaginação, sem que o real seja imaginado de forma a exprimir-se artisticamente, de forma a surgir como um objectivo poético (artístico), de forma a concretizar-se em arte.

Esta concretização da dor no poema opera na memória do poeta o retorno à sua dor inicial, parecendo-lhe a dor imaginada mais autêntica do que a dor real. É a sobreposição do objecto artístico à realidade objectiva que lhe serviu de base: “chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente”. Isto conduz-nos à ideia de fruição artística, da parte do poeta.

            Na segunda parte do poema, o poeta alude à fruição artística da parte do leitor. Este não sente a dor real (inicial), que o poeta sentiu, nem a dor imaginária (dor em imagens) que o poeta imaginou, ao ser artífice do poema, nem a dor que eles (leitores) têm, mas só a que eles não têm. Isto é, o que o leitor sente é uma quarta dor que se liberta do poema, que é interpretado à maneira de cada leitor.

Há na segunda estrofe referência a quatro dores: a dor sentida (real), a dor fingida pelo poeta, a dor real do leitor e a dor lida (dor intelectualizada que provém da interpretação do leitor e que é objecto da sua fruição.

A terceira parte do poema, como a própria expressão "E assim" prenuncia, constitui uma espécie de conclusão: o coração (símbolo da sensibilidade) é um comboio de corda sempre a girar nas calhas da roda (que o destino fatalmente traçou) para entreter a razão. Há aqui uma referência à função lúdica da poesia, que começa na fruição de que o próprio poeta goza, no acto da criação artística. São aqui marcados os dois pólos em que se processa a criação do poema: o coração (as sensações donde o poema nasce) e a razão (a imaginação onde o poema é inventado). Fecha-se neste fim do poema como que um círculo cuja linha limite marca uma pista sem fim em que nunca se esgota a dinâmica do jogo sensação-imaginação.

Quanto aos aspectos morfo-sintácticos, desde logo a ligação por meio do síndeto (coordenativa "e") das três estrofes do poema impondo não só a divisão do texto em três partes lógicas, mas também sugerindo uma sequência lógica no desenvolvimento do assunto.

Os verbos, com excepção da forma teve (pretérito perfeito), encontram-se no presente, o que está de acordo com a natureza teórica do poema, que é anunciada pelo título "Autopsicografia" (estudo que o poeta faz do fenómeno psicológico que nele se passa, no acto de criação artística, portanto no presente).

A forma do perfeito "teve" explica-se porque é exigida para marcar a prioridade temporal em que o poeta experimentou as suas dores em relação ao tempo (presente) em que o leitor experimenta a dor lida.

A expressão infinitiva "a entreter" apresenta-se com um nítido aspecto durativo, insinuando a repetição continuada do processo criativo. Note-se a insistência do poeta no processo mais importante da criação poética: o fingimento. Este processo é marcado pelas formas verbais "finge" e "fingir" e pelo substantivo "fingidor". O verbo fingir (do latim "fingere " = fingir, pintar, desenhar, construir) aponta não apenas para disfarçar, mas também para construir, modelar, envolvendo, assim, todo o processo criativo desenvolvido pelo poeta na produção do poema: o poeta é um artífice.

É interessante a perífrase "os que lêem o que escreve" (para significar os leitores) por ser portadora de uma expressividade especial: aponta para os dois intervenientes fundamentais do processo poético --o emissor (poeta) e os receptores (leitores).

Além da reiteração (repetição), já apontada, do verbo fingir, há ainda a do verbo sentir, que não se deve desligar da repetição do substantivo dor (três vezes), além de outras três vezes que se repete por intermédio de pronomes, ou expressões ("que","as duas", "a que"). A insistência na dor e no sentir está de acordo com o facto de o poeta ter tomado a dor como tema exemplificativo da criação poética e pelo facto de as sensações (o sentir) serem o ponto de partida dessa criação.

Em relação à sensação do sujeito lírico e dos leitores, são expressivos os advérbios: "Finge tão completamente";... Deveras senta"; "...sentem bem". Estes advérbios sugerem a veemência, o rigor com que a sensação da dor se impõe, quer ao poeta quer aos leitores. Os advérbios estão pois a marcar a intenção do autor: expor a sua teoria poética com rigor. O acto de fingir é tão importante que o poeta o superlativou não apenas pela expressão adverbial "tão completamente", mas também por meio da subordinada consecutiva "que chega a fingir". Notemos que a subordinação (hipotaxe) é muito mais importante do que a coordenação, o que está de harmonia com um discurso teórico que tem por finalidade apresentar uma teoria da criação poética.

Repare-se na expressividade das duas metáforas, de valor altamente simbólico, que se encontram na última estrofe: calhas de roda e comboio de corda. Esse comboio de corda (o coração), ultrapassando o significado denotativo de brinquedo, aponta sobretudo para um sentido simbólico relacionado com a função lúdica da poesia., e assim, gira nas calhas de roda. Também essas calhas de roda ultrapassam o significado de carris (correspondente ao sentido de comboio de corda) para apontarem simbolicamente para um rumo necessário, marcado pelo destino, qualquer coisa que sucede por fatalidade, na vida (na roda da vida).

O poeta, é pois, um ser predestinado a brincar intelectualmente com as sensações, elevando-as ao nível da arte poética, transformando-as num objectivo, artístico, que é o poema, também objecto de fruição lúdica para os leitores.

No que toca à forma do poema, aos seus aspectos fónicos, parecer-nos-á estranho que Pessoa tenha escolhido o verso de redondilha (verso curto de sete sílabas), de feição rítmica popular, distribuídos em quadras, para expor uma teoria intelectualizada e de alto nível mental. Trata-se de um entre tantos paradoxos de que o proceder de Pessoa é fértil. Note-se que os casos frequentes de transporte, verificados em grande parte dos versos vem reduzir as dificuldades que o metro curto poderia oferecer ao desbobinar do raciocínio do poeta.

A rima é sempre cruzada, apresentando uma certa irregularidade nos versos 1º e 3º da última estrofe. Notar os dois pares rimáticos fingidor/dor e razão/coração, em que se poderá ver uma certa intenção expressiva, se relacionarmos razão com fingidor e o coração com dor: ficariam assim em lugar de destaque, bem marcados os dois pólos de criação poética – as sensações e o fingimento.

O título do poema pode levar-nos à conclusão de que o poeta quer explicar o processo psíquico que nele se passa, ao elaborar um texto poético. Como se explica, então que o poeta nunca empregue o pronome "eu", nem qualquer verbo na primeira pessoa, e que parte precisamente de uma afirmação axiomática, "O poeta é um fingidor", de aplicação universal, aplicável a todos os poetas? "Este poema está construído na 3ª pessoa como a lei de Newton, ou qualquer outro enunciado científico" – afirma A. J. Saraiva – "para significar que é a inteligência, como um ser autónomo, que explica o processo de criação poética".

Por meio do título, o autor quis significar que a teoria da criação poética, exposta no poema, de valor universal porque aplicável a todo o verdadeiro poeta, foi elaborada por via da auto-introspeccção, por meio da qual Fernando Pessoa verificou o processo em si próprio. O título aponta para o palco de experimentação e verificação de uma teoria poética que o autor julgou de valor universal.

publicado por novosnavegantes às 23:30
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47 comentários:
De Anónimo a 22 de Setembro de 2007 às 16:11
análise perfeita. congratulations xD! *plim*!
obrigado! by kitty:)!
De Anónimo a 22 de Setembro de 2007 às 16:14
perfeito.... xD. congratulations, beijinhos kitty!
ajudaram-me muito neste trabalho de casa (análise do poema Autopsicografia). continuem assim xD!!!!!!!!! e para a proxima venho novamente aqui!
vou ter um alta notão, eheh! *plim*! muito obrigado, sapinho, xD!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
BEIJINHOS DA KITTY!
De Anónimo a 7 de Dezembro de 2015 às 13:51
Esta merda tem que mudar sua puta do caralhao
De Anónimo a 3 de Outubro de 2019 às 15:10
és ganda tono tu
De Maria a 21 de Junho de 2021 às 16:05
chupa-mos
De conagostosa a 21 de Setembro de 2018 às 11:22
Vai po karalho porca
Ps:QUERO PILA
De conagostosa a 21 de Setembro de 2018 às 11:25
vai po karalho puta de merda ...qual *plim* qqual que...uma pirocada nessa testa
De lipa a 7 de Outubro de 2007 às 19:13
mmttt á frente....grande analise
ja tinha analizado este poema na aula e pode verificar aki um grande trabalho... vai ajudar-m mt a compreender melhor fernando pessoa
De Anonimo a 16 de Janeiro de 2008 às 15:00
Parabéns !!!!!!!!! o vosso trabalho é excelente.
Todas as que tem são muito boas e ajudaram -me bastante. continuem assim!!!!!!!!!!!
De Júlia a 31 de Março de 2008 às 16:36
Parabéns!!!! Muito boa a análise e fez-me compreender melhor e desenvolver melhor uma ideia e opinião sobre este poema!
De Amaral Lucas a 8 de Maio de 2008 às 16:40
Thanks a zillion ajudaram-me heaps no trabalho... Gr8 Work
De Linda Lopes ;) a 19 de Janeiro de 2010 às 17:03
(...)fala português ya vê lá a minha irmã não percebeu nada...
De Izis Negreiros a 28 de Outubro de 2010 às 15:24
Favor me responda o significado da palavra ZILLION
De Alex a 16 de Junho de 2008 às 16:57
muito boa análise ! obrigada =)
De Jessy a 18 de Junho de 2008 às 01:00
Muito bem! Perfeito sua posição sobre o poema foi muito boa!

Aliás eu diria a melhor que encontrei na net!

Beijinhos sapoooooooooooo....

******************jESSY*****************
De Ruben a 25 de Setembro de 2008 às 10:23
ja me safaram numa aula..xDD
De ana a 29 de Setembro de 2008 às 17:59
Boa analise... bem que me ajudou nos trabalhos.
De Tânia a 30 de Setembro de 2008 às 17:30
podem ajudar-me a relacionar a teoria do fingimento poético do poema Autopsicografia de Fernando Pessoa com o quadro de Costa Pinheiro, Espaço Poético II.

obrigado
De soraia a 10 de Outubro de 2008 às 21:47
vi o teu comentario
e por acaso tambem estou a sofrer do mesmo mal.lol ja conseguiste relacionar o poema com o quadro de costa pinheiro?
e que eu tenho que relacionar e nao consigo...
se poderes responde (soraia-alexandra-sa@hotmail.com)

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